quinta-feira, 23 de maio de 2013

JUDEUS EM PORTUGAL NO SÉCULO XV




DO APOGEU À EXPULSÃO

1349, Queimando judeus, Crónicas Europeias da Peste Negra


       As matanças de Navarra de 1320 e 1328, a «peste negra» de 1348 e a guerra civil castelhana de 1366, provocaram um surto de imigração dos reinos vizinhos para o nosso país, que viria a ter um forte impacto na população judaico-portuguesa. Iniciados pelo clero de Sevilha, os massacres atingiriam o seu pico de violência no Verão de 1391, nos reinos de Castela e Aragão. Na sequência destes acontecimentos, em Portugal, a pedido de Moisés Navarro II (dito Moisés de Leiria), que à altura desempenhava os cargos de médico real e rabi-mor, D. João I fez proclamar uma bula do papa Bonifácio IX que proibia os seus súbditos de maltratar os judeus ou profanar as suas instituições. 

D. João I, Mestre de Avis e Rei de Portugal, séc. XV, Anónimo, MNAA


        Com esta medida, D. João I, o de Boa Memória, dissuadiu o clero e o povo de seguirem o exemplo espanhol. Entretanto, o rabi-mor prestava auxílio aos refugiados judaico-espanhóis, havendo muitos a renunciar ao baptismo a que tinham sido forçados.

     Em 1412 Castela promulga legislação antijudaica, de tal forma severa e opressiva, que provoca uma nova vaga de refugiados. Como consequência desta forte imigração, o número de comunidades judaicas em Portugal quase quintuplicou no século XV. 


Judiaria de Castelo de Vide


       Medidas impostas pelo Concílio de Latrão relativamente aos judeus, como a separação dos bairros e o porte de insígnia, foram frequentemente ignoradas em Portugal. As Cortes do reino, reunidas em Elvas em 1361, obrigam D. Pedro I a dar força de lei à decisão da Igreja; no reinado seguinte (D. Fernando I), pouca atenção lhe é dada; porém, no tempo de D. João I, por um édito emitido em Braga a 3 de Setembro de 1400, a lei da segregação é tornada obrigatória em todo o reino.

     A separação residencial, no entanto, não era necessariamente sentida como uma marginalização. Para já, porque havia liberdade económica e os bairros habitados por judeus, na maior parte das cidades portuguesas, estavam normalmente situados na proximidade das portas e das vias de comunicação. Por exemplo, a Judiaria Grande de Lisboa estava a alguns passos do Terreiro do Paço. Por outro lado, os muros dificultavam o acesso a um espaço que se queria protegido, onde se desenvolvia uma vida comunitária autónoma. 


Figuras do Teatro Vicentino – Dama e Fidalgo


      A segregação da população minoritária estava essencialmente relacionada com a preocupação, que era recíproca, de evitar a convivência entre judeus e cristãos. Os estados portugueses de 1481 apresentavam o judeu como um sedutor, dizendo: «Vemos os judeus em cavalos e muares ricamente ajaezados (…); trazem espadas douradas, toucas em rebuço, (…) de modo que é impossível serem conhecidos. Entram assim nas igrejas e escarnecem do Santo Sacramento e misturam-se com as cristãs em grave pecado contra a santa fé católica.» 

Abraão Saba, pregador refugiado de Zamora, intimava os seus fiéis a recear as jovens cristãs que, passeando às portas da judiaria, «se põem de emboscada na mira de almas inocentes».

     Mas era impossível impedir o convívio entre as duas comunidades. As relações podiam ser de simples boa vizinhança, de amizade, ou de amor. No Auto da Lusitânia de Gil Vicente, ouvimos um cortesão apaixonado por uma judia:

“Cortesão: Ó doce frol antre espinhas,/crede o amor sem mudança/que vos tenho e que vos digo.”

A jovem finge que não entende:

“Lediça: Assi has primas minhas/e toda essa vizinhança/todos tem amor comigo: Dom Isagaha Barabanel e Rabi Abram Zacuto/e Donegal Coronel, e Dona Luna de Cosiel,/e todos me querem muito. (…)”


Detalhe de página da 14ª edição de “Guia dos Perplexos”, Maimónides


     A esmagadora maioria da população judaica portuguesa dedicava-se ao artesanato, sendo mais frequentes as profissões de alfaiate, sapateiro, ferreiro e ourives. Havia ainda tecelões, tosadores, carpinteiros, esmaltadores e todo o tipo de ofícios. Mas o saber judaico no campo da medicina tinha nome além-fronteiras e era respeitado, tanto por judeus, como por cristãos; os físicos e cirurgiões guiavam-se pela oração de Maimónides, o célebre médico de Córdova: D’us, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as criaturas. Afasta de mim a tentação de que a sede do lucro e a procura da glória me influenciem no exercício da minha profissão. Apoia a força do meu coração, para que ele esteja sempre pronto a servir o pobre, o rico, o amigo e o inimigo, o justo e o injusto. (…) Dá-me a força, a vontade e a oportunidade de aumentar cada vez mais os meus conhecimentos, de modo a que deles beneficiem os que sofrem. Ámen.” 

Livros de Jonas e Amos, Bíblia de Lisboa


       Eram os copistas e iluministas que, com minúcia e arte, desenhavam as letras e iluminuras para os textos sagrados. António Ribeiro dos Santos, um erudito contemporâneo do Marquês de Pombal, regista na sua obra Memórias da Literatura Sagrada dos Judeos Portuguezes, desde os primeiros tempos da Monarchia até aos fins do século XV, um Código em pergaminho da Bíblia escrito na Guarda em 1346, entretanto desaparecido; temos a Bíblia de Lisboa, completada em 1482, que é o códice mais completo da Escola Medieval Portuguesa de Iluminuras Hebraicas. 


Facsimile do Pentateuco hebraico da oficina de Samuel Gacon


      O primeiro livro impresso em Portugal é o Pentateuco – os cinco livros de Moisés que compõem a Torá -, numa edição em hebraico da oficina tipográfica de Samuel Gacon, em Faro, no ano de 1487. No mesmo ano é impresso o primeiro livro em Lisboa: o Comentário ao Pentateuco, do rabino medieval espanhol Nachmánides, também editado em hebraico na oficina de Eliezer Toledano.

Almanach Perpetuum, Abraão Zacuto


      Da oficina de Samuel d’Ortas, em Leiria, sai em 1496 a obra Almanach Perpetuum (calendário astronómico perpétuo), traduzida do hebraico para espanhol e latim por Mestre Vizinho, de um original anteriormente publicado em Espanha que, juntamente com um astrolábio aperfeiçoado, ambos da autoria de Abraão Zacuto, foram utilizados por Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral nas suas viagens. 

Lisboa Renascentista, Ribeira das Naus, António d’Holanda


      Outros judeus dedicavam-se ao comércio, dos quais a maior parte eram mercadores ambulantes que vendiam nas feiras, ou garantiam as trocas de produtos entre a cidade e o campo. Em Lisboa e Évora, nos finais do século XV, havia grandes importadores-exportadores, que para além de dominarem uma vasta rede comercial com os seus correligionários do Magrebe e do Oriente e com algumas praças comerciais europeias, formavam sociedades poderosas com mercadores italianos e flamengos. Com a expansão marítima, desenvolveram ramos de comércio altamente lucrativos, tais como a exportação do açúcar da Madeira, o comércio de ouro e de escravos da Guiné. 

O Judeu, oficina de Vasco Fernandes, primeira metade do séc. XVI, MNAA


      Aos olhos do preconceito e da intolerância o judeu é um ser infame, “assassino de Cristo”, devendo por isso expiar a sua culpa. Uma das imposições a que estava sujeito eram os tributos, muito superiores aos exigidos à restante população:

Judenga – tributo de 30 dinheiros, por cabeça, por terem vendido Jesus por este preço;
Sisa Judenga – tributo aos judeus;
Genesim – imposto pago à Coroa pelas aulas de religião do rabi

   A educação religiosa das crianças (geradora de um elevado grau de alfabetização) era uma responsabilidade partilhada pelos pais e pela comunidade, e alvo de um imposto extraordinário. 

          Apesar da pesada carga fiscal, a gente de nação cuidava dos seus. A caridade, como a assistência aos pobres ou o resgate de cativos, era realizada a partir de donativos, cujo capital era aplicado em bens imobiliários. 

D. Afonso V no assalto a Arzila em 1471, Tapeçarias de Pastrana


       Foi neste espírito que a confraria judaica de Lisboa não hesitou em vender os seus bens fundiários, de modo a resgatar os 250 judeus que faziam parte dos cativos de Arzila a serem vendidos como escravos nos mercados portugueses, após a conquista daquela cidade africana, por D. Afonso V, em 1471. 


D. Afonso V, cópia de uma iluminura de Dário de Jörg von Bringen, MNAA


        Foi também no reinado de D. Afonso V que se deu o assalto à Judiaria Grande de Lisboa, em Dezembro de 1449. O povo invadiu a judiaria, saqueou casas e matou vários judeus, num acto de vingança por a justiça ter condenado alguns jovens a penas corporais, por estes terem agredido judeus no mercado de peixe. A resposta do poder real foi dura: os instigadores do motim foram publicamente açoitados, exilados ou executados.

       O reinado deste monarca foi o último período em que os judeus na Península Ibérica gozaram de liberdade e prosperidade; estavam dispensados de usar o sinal distintivo, eram livres de residir fora das judiarias e podiam mesmo exercer cargos públicos. Quando D. Afonso V precisou de contrair um empréstimo para suportar as despesas da guerra com Castela (1475-1479), recorreu às fortunas dos judeus, conforme se lê na carta do recebedor-mor da verba, Pedro Estaço “nos emprestimos ha a notar terem sido quasi todos realizados com judeos, sendo os principaes os Palaçanos e os Abravaneis.”.
«Quando morreu D. Afonso», escreve *Isaac Abravanel, «todo o Israel ficou cheio de dor e de luto; jejuavam e choravam».

D. João II, Fundação da Casa Ducal de Medinaceli


    Após a expulsão de Espanha de 1492, uma grande parte dos desterrados cruzou a fronteira com Portugal; estima-se que tenham entrado entre 30 mil a 50 mil pessoas, com os necessários problemas humanitários de que daí advieram.

      Coube a Dom Isaac Aboab, último Grande Rabino de Castela, negociar com D. João II a entrada da gente hebraica em Portugal. Às famílias mais ricas, que podiam pagar taxas elevadas, e aos artífices, considerados úteis para as expedições marítimas, foi-lhes autorizado fixar residência; aos demais apenas lhes foi permitida a entrada no país mediante um imposto de oito cruzados por cabeça, e na condição de não permanecerem mais de oito meses. Dentro desse prazo o rei comprometia-se a fornecer-lhes navios para os transportar a outros destinos. Mas as condições acordadas não foram cumpridas e os que se aventuraram a embarcar foram tratados com grande crueldade; largados em qualquer porto ou praia deserta no Norte de África, muitos conheceram o cativeiro.
     Sobre este acontecimento disse Garcia de Resende:

Vimos a destruição/Dos judeus tristes, errados,/Que de Castella lançados/
Fora, com grande maldição/Ao reino de Fez passados./De mouros foram roubados,/
Deshonrados, abiltados;/Que filhos, filhas, e mães lhes incestavam aquelles cães./Moças, e moços forçados.”

     Quanto aos que ficaram, esgotado o prazo estipulado, foram reduzidos à escravatura e por preço algum se lhes aceitava resgate. Por ordem real, os pais perderam o direito aos filhos menores de oito anos, que lhes foram arrancados, baptizados e, posteriormente, oferecidos por D. João II a Álvaro de Caminha, senhor da ilha de São Tomé, com o fim de povoarem aquela colónia africana. A maioria destas desafortunadas crianças perdeu a vida: umas no decurso da viagem, outras devido ao clima daquela ilha tropical. 

D. Manuel I (1469-1521)

       D. Manuel I sobe ao trono em 1495 e consente em devolver a liberdade aos cativos, mediante o pagamento de 16 mil cruzados. A situação dos judeus acalma. Porém, a tranquilidade pouco dura. O monarca deseja contrair matrimónio com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, mas a infanta não aceita vir para um país onde houvesse “hereges”. D. Manuel responde com o Édito de Expulsão para judeus e muçulmanos, promulgado a 5 de Dezembro de 1496.

     Consciente dos prejuízos desta medida, que privaria Portugal do espírito empreendedor dos judeus, do seu saber científico e artesanal, indispensáveis à expansão marítima, o rei multiplica obstáculos à sua partida. 

Édito da Conversão de 1497

          Surge assim a ideia de uma conversão forçada, só para os judeus (os mouros foram poupados a esta barbárie, já que havia muitos cristãos cativos no Norte de África); este projecto provoca uma viva oposição do Conselho de Estado, nomeadamente do seu presidente, o bispo do Algarve, D. Fernando Coutinho.

     Certos cronistas judeus atribuem a ideia da conversão forçada a Levi ben Shemtov, um pregador de Saragoça, recentemente baptizado em Portugal, que se aliou a D. Manuel, e que lhe terá proposto um processo em três fases: privar os judeus dos seus imóveis e objectos de culto; tirar-lhes os filhos e eliminar a sua elite religiosa.

     Subitamente tudo se desmorona: as orações públicas são proibidas, as preciosas bibliotecas comuns ou privadas, as sinagogas, bem como as casas de estudo, com todos os seus pertences, são confiscadas. Os cemitérios são transformados em pastos e as suas lajes serão usadas na construção; as de Lisboa vão para o Hospital de Todos-os-Santos.

     No dia 19 de Março de 1497, em Pessach, as crianças com menos de 14 anos foram arrancadas à chicotada dos braços de seus pais, num clima de demência colectiva em que a multidão as arrastava para a igreja mais próxima, a fim de serem baptizadas e entregues a famílias cristãs. Foi tal o horror, que houve cristãos a esconderem crianças judias para as poupar àquele sofrimento. 

A – Estaus; B – Igreja de São Domingos; C – Hospital de Todos-os-Santos
(Olissipo, detalhe, Braun & Hogenberg, 1598)

      O rei, que designara três portos para o embarque dos judeus que não queriam converter-se – Lisboa, Porto e Setúbal -, convocou-os repentinamente para Lisboa, onde deveriam comparecer no palácio d’ Os Estaus; depois, atrasou o embarque até passar o prazo previsto para a expulsão e decretou que daí em diante eram seus escravos.

     Abraão Saba (cujos filhos lhe foram tirados à força), que foi um dos cerca de dez mil judeus encerrados no pátio do edifício, relata que ficaram sem água nem comida durante quatro dias. Samuel Usque e várias fontes cristãs afirmam que a violência aumentava para os que resistiam à conversão, ao ponto de muitos terem sido borrifados com água, e ali mesmo declarados cristãos – os chamados “baptizados em pé”.

     O ilustre rabino Simão Meimi, recusando o baptismo até ao fim, sucumbiu às torturas a que foi submetido. O próprio Abraão Saba fez parte de um grupo de 40 resistentes que durante seis meses esteve preso n’Os Estaus, recusando sistematicamente o baptismo. No início de 1498, D. Manuel decide deportá-los para o Norte de África.

     O astrónomo real Abraão Zacuto conseguiu recuperar o seu filho já baptizado e emigrar para África, com um grupo de 27 pessoas que também tinham resistido ao baptismo.

     Foram numerosos os que conseguiram emigrar, mas mesmo entre os baptizados, muitos esperavam pelo momento oportuno para fugirem do país. Graças a uma conversão geral compulsiva, Portugal pôs fim ao Judaísmo, que passou à clandestinidade. Parafraseando o humanista português Jerónimo Osório, a maioria tornou-se cristã por «um acto iníquo e injusto cometido contra as leis e contra a religião». 

Este artigo foi um presente da nossa
Sónia Craveiro
a quem desde já agradeço o carinho,

Muito obrigada
Beijinhos




*Isaac Abravanel – consultar artigo no endereço abaixo:








Fontes:

WILKE, Carsten L., HISTÓRIA DOS JUDEUS PORTUGUESES, Edições 70;
GUARDA HISTÓRIA E CULTURA JUDAICA MUSEU, Edição Comemorativa do VIII Centenário da Cidade da Guarda;
MALKA, Edmond, Fiéis Portugueses/Judeus na Península Ibérica, Edições Acrópole;


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