segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Espanha judaica



De volta a Sefarad


Meio milénio depois da expulsão, descobertas em terras espanholas remontam o longo passado dos judeus na Península Ibérica. Que eles tratavam por Sefarad.




No norte da África, ainda há judeus guardando a antiquíssima chave da casa da cidade espanhola onde seus antepassados viveram. Trata-se de uma façanha de preservação, passada sucessivamente de pai para filho. Afinal, vale lembrar que os judeus foram expulsos da Espanha em 1492 - o mesmo ano da descoberta da América. Lá se vai, portanto, mais de meio milénio. Dentre aquele que, ao cabo de muitas gerações, conseguiu manter a chave no baú, a maioria o fez ciente de estar conservando uma relíquia de valor histórico, mas, sobretudo, familiar. Uma preciosidade sentimental, enfim. Mas narra-se, também, que alguns desses judeus continuam confiando na serventia prática da tal chave. Em outras palavras: aquele enferrujado metal ainda abriria a porta da remota residência da família na Espanha.  

O mais incrível: algumas daquelas casas dos guetos judaicos, de fato, foram mantidas tal e qual há mais de 500 anos. Desde aquele período, nenhum outro ser humano havia entrado nesses lares, erguidos ainda nos idos medievais.

Assim aconteceu em Girona, na Catalunha, uma das 17 comunidades autónomas da Espanha actual. Estacionado no tempo, como se meio milénio de História fosse mero hiato, lá está - intacto! - um trecho inteiro do antigo bairro judeu da cidade. Essa área esquecida pela especulação pode ser vista através de uma das janelas do Museu D'Història dels Jueus - um dos dois museus do país que narram a saga judaica na Espanha; o outro fica em Toledo.

Sonhadores, esses judeus imaginam que malgrado o peso de cinco séculos, o domicílio estaria de pé, assim como foi abandonado, às pressas e à revelia, no raiar da Idade Moderna.


Há apenas três anos, escavações em Barcelona revelaram ruínas de uma das primeiras sinagogas da Europa.


Quem encosta o nariz no vidro da tal janela observa, assombrado, as casas estreitas, de dois ou três pavimentos, desafiando o desdobrar dos séculos. Essas residências permaneceram inalteradas na Cidade Velha, em meio às vielas e labirintos do call - ou bairro judeu, na língua catalã. A razão da invulgar preservação?  






Os sefarditas eram, na Idade Média, um povo essencialmente urbano. Foram proibidos de posses agrárias.



Ao intento da Rede de Juderías, cabe registar, que vai além de reconstituir o passado dos sefarditas - ou seja, dos judeus de raízes ibéricas, ao passo que os judeus radicados na fracção oriental da Europa são chamados de asquenazitas. Outro dos sólidos objectivos da associação é estabelecer um seguro roteiro histórico e religioso. Dessa maneira, procura-se abrir uma perspectiva prática para que novas gerações de ascendência sefardita viajem para a Espanha e conheçam in loco as origens de uma cultura que, a despeito de seguir com fidelidade os preceitos e dogmas comuns aos hebreus, firmou suas especificidades.


MARCAS DO PASSADO



O judeu mestre-de-obras Bertrand de la Borda incluiu esta estrela-de-david no claustro da igreja católica de Seu Vella, em Lérida.

A começar pela língua, enquanto os asquenazitas (Asquenaz quer dizer Alemanha, em hebraico) desenvolviam o ídiche, os judeus radicados na Península Ibérica se comunicavam por intermédio do ladino, idioma também conhecido por judezmo, espanyol ou didjio. Grosso modo, era uma adaptação do espanhol antigo, enxertado por uma amálgama de palavras hebraicas, árabes, turcas e portuguesas. Detalhe: uma comunidade isolacionista de Salónica, cidade na Grécia continental, ainda conversa no dia-a-dia nessa língua medieval, constituindo um caso raríssimo de conservação semântica. Por maiores os esforços da Red de Juderías, urge uma ressalva. Embora descobertas como o intacto call de Girona tenham gerado justificado arrebatamento, a própria entidade leva em conta um intransponível limite: o maior quinhão do património sefardita no país não sobreviveu aos nossos dias.




  EM TOLEDO, HERANÇA NOTÁVEL


Impedidos, por uns e por outros, de se candidatar a cargos militares ou, mesmo, do direito à posse agrária, os sefarditas tornaram-se um povo de essência urbana, dedicado a ofícios tais como tecelagem, alfaiataria, tinturaria, curtume e ourivesaria. Eles foram, no frigir dos ovos, os precursores da pequena burguesia. Só os mais afortunados - uma minoria, diga-se a bem da verdade - chegariam mais tarde a trabalhar como cobradores de impostos e banqueiros. Ocupações que, como se verá adiante, também seriam sua ruína.



UM TEMPLO HISTÓRICO


A bela Sinagoga del Tránsito foi transformada em igreja cristã no século 15. Só nos anos 1970 teve restituída a sua religião original


Um dos redutos onde o património sefardita ainda se conserva notável é Toledo, a 70 quilómetros de Madrid (e a meia hora de distância pelo recém-inaugurado comboio AVE). Na razão directa dessa herança, a cidade acolhe um daqueles dois museus dedicados à memória de Sefarad. Embora reúna hoje só 12 mil moradores, Toledo foi de vital importância na Idade Média. Aliás, manteve-se, na era seguinte, como capital da Espanha até 1531, quando o déspota Felipe II transferiu o centro de decisões para Madrid. No auge da cidade medieval, 10% da população que vivia dentro das muralhas de Toledo era constituída por judeus, contingente calculado pelos historiadores em 350 famílias. A cidade contava então com 12 sinagogas, várias construídas no atraente estilo árabe mudéjar - pois os mouros eram, então, os manda-chuvas na arquitectura. Restam hoje dois desses templos judaicos. Ambos foram transformados em igrejas cristãs, ainda no século 15.

A sinagoga mais antiga de Toledo, erguida três séculos antes disso, é a Igreja de Santa Maria Blanca, que, como informa o nome, permanece administrando ritos católicos, embora sua decoração revele signos hebraicos. Há duzentos anos atrás, a Sinagoga del Trânsito foi restituída à religião original somente nos anos 1970. Muitos de seus visitantes ficam pasmos ao notar, no teto e nas paredes, escritos religiosos com grafia tanto em hebraico (salmos, mais amiúde) como também em árabe (saudações do Corão). Singular nesse sentido, também, é a estrela-de-david que o mestre-de-obra judeu Bertrand de La Borda esculpiu no claustro da igreja católica de Seu Vella, na cidade de Lérida (ou Lleida, em catalão), em meados do século 14.


Lembranças arquitectónicas como essas serviram para forjar um mito divulgado com frequência por apressados historiadores de várias etnias: aquele, segundo o qual, a Idade Média na Península Ibérica teria sido um luminoso - e inédito - período em que os seguidores das três maiores religiões monoteístas conviveram, sem atritos, em absoluta e sacrossanta paz.

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